“Pretagonismos no acervo do Museu Nacional de Belas Artes”: reivindicação de espaço, de presença e a valorização da negritude nas artes
- Amina Potter
- 26 de dez. de 2024
- 15 min de leitura
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Eu estava saindo de um evento no Centro Cultural Hélio Oiticica e pronta para ir para casa, quando dois amigos convidaram-me para a abertura da exposição “Pretagonismos no acervo do Museu Nacional de Belas Artes”, no Espaço Cultural BNDES e é claro que fui. A palavra “Pretagonismo” foi apropriada do título de um livro organizado por Rodrigo França e Jonathan Raymundo e é um neologismo utilizado para ressignificar o domínio que as pessoas negras possam ter sobre suas próprias narrativas. A mostra foi idealizada por um corpo curatorial (Amauri Dias, Ana Teles da Silva, Cláudia Rocha e Reginaldo Tobias de Oliveira) todo formado por uma equipe permanente do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) e quer frisar as trajetórias de luta, resiliência, transgressão e heroísmo de pessoas negras.
O MNBA, museu de origem acentuadamente euro centrada, vem tentando, segundo sua gestora, tornar-se mais aberto, democrático, engajado socialmente, buscando configurar-se em uma instituição plural e diversa. As sementes da exposição “Pretagonismos” foram plantadas ainda em 2018, durante a mostra “Das galés às galerias: representações e protagonismos do negro no acervo do MNBA”. Agora, segundo a curadoria, o MNBA quer avançar no protagonismo de artistas negros, que foram invisibilizados pelas instituições, inclusive pelo próprio MNBA. O prédio do museu está em obras desde 2020 e, por isso, este projeto está sendo realizado no Espaço Cultural BNDES, que havia sido fechado na pandemia de Covid-19. “Pretagonismos” também marca o retorno dos investimentos do banco em cultura.
A exposição apresenta seis núcleos que não seguem uma ordem cronológica, mas sim temática. São eles: “Mestres negros pioneiros”; “Nas brechas das representações: imagens e trajetórias de negros no acervo do Museu Nacional de Belas Artes”; “Entre a cátedra e o cativeiro: professores negros”; “Estevão Silva: transgressões e prenúncios da modernidade no MNBA” e “Decolonialidade em perspectiva: um olhar sobre os artistas negros desde a criação do MNBA”.
Logo no início da mostra, várias obras do gênero retratos estão presentes. Um gênero da pintura que era praticamente exclusivo de pessoas brancas e ricas. Quando pessoas negras eram representadas em obras de arte, quase sempre estavam trabalhando e não eram identificadas. A primeira obra da exposição é o “Autorretrato, como Tarsila do Amaral” (2022), uma tela a óleo de Panmela Castro (Figura 1A). Panmela é uma artista contemporânea, negra, de origem periférica, que após sofrer violência doméstica passou a usar o grafite de rua para alertar mulheres sobre os seus direitos. A artista é fundadora da rede NAMI, que usa a arte como ferramenta de comunicação para que mais pessoas, principalmente mulheres negras cis e trans, saibam como lutar por seus direitos. Com esta pintura, Panmela estabelece um diálogo com um dos autorretratos mais emblemáticos do acervo do MNBA: o da artista Tarsila do Amaral “Autorretrato”, ou “Le manteau rouge” (1923), (Figura 1B).

Filha de fazendeiros de Minas Gerais, Tarsila foi morar em Paris em 1920. A partir de 1923, ela ficou conhecida nos ateliês franceses e é desse ano a obra mencionada. Nela, a artista retratou-se com uma capa vermelha, que usou em um evento num teatro de Paris, e que foi criação do famoso estilista Jean Patou. Assim, Tarsila, menina rica, branca e influente, construiu sua imagem de artista brasileira bem-sucedida, com fama internacional, tendo sido uma das figuras chaves do movimento modernista. Com o seu autorretrato, Panmela Castro marca presença e reivindica espaço, através da valorização da sua imagem de mulher e artista preta, dentro de um museu fundado em cima de preceitos racistas e colonialistas.
Outra obra, ainda de abertura da exposição, que eu não posso deixar de mencionar porque não passa desapercebida é “Cesar Coral” (2022), do artista baiano Brendon Reis. Trata-se de uma grande tela (1,6 m x 1,4 m) e retrata um homem negro, com a pele azul. A obra foi feita com tinta acrílica, giz pastel e possui aplicações de ouro 12K, ponto metálico e cristal Swarovski (Figura 2A). Quando vi a obra de Brendon, não pude deixar de lembrar do quadro “Mestiço” (1935), de Candido Portinari (Figura 2B). Em seu trabalho, Portinari não fugiu do clichê representativo da época: pessoas negras com corpos fortes e em seus locais de trabalho ou trabalhando. Mas o negro da obra de Brendon é bem diferente. Apesar da semelhança da pose e das feições do homem, que me fizeram lembrar do Portinari, o artista baiano retrata o homem cheio de elementos caros, como ouro e cristais, enriquecendo a sua negritude. Stuart Hall em seu texto “Identidade cultural e diáspora” (1996) vai dizer:
“...Longe de fixas eternamente em algum passado essencializado, (as identidades) estão sujeitas ao contínuo ‘jogo’ da história, da cultura e do poder. As identidades, longe de estarem alicerçadas num simples ‘recuperação’ do passado, que espera para ser descoberto e que, quando o for, há de garantir nossa percepção de nós mesmos pela eternidade, são apenas os nomes que aplicamos às diferentes maneiras que nos posicionam, e pelas quais nos posicionamos, nas narrativas do passado.” (HALL, 1996, p. 69. Parênteses nosso).

Desta forma, entendo que nessas obras, Panmela Castro e Brendon Reis promovem um reposicionamento das suas identidades dentro do jogo da história, da cultura e do poder. Essas obras pertencem ao passado, mas também ao futuro.
Ainda nesta parte da exposição temos um raro retrato do século XIX de um homem negro. Trata-se da obra de José Correia de Lima, o “Retrato do intrépido marinheiro Simão, carvoeiro do vapor Pernambucana” (1853), (Figura 3). Conta a história, que Simão era um homem livre, cabo-verdiano, e que salvou muitas pessoas durante um naufrágio do vapor Pernambucana. Esta obra, de fato escapa à regra. Primeiro por retratar um homem negro, segundo, por identificar este homem e enaltecê-lo. Mas, se refletirmos bem, isto só foi possível porque Simão, além de não ser um homem escravizado, também salvou muitas pessoas da elite. Além disso, apesar da austeridade de sua representação, Simão aparece na tela com a camisa aberta, deixando a mostra o seu tórax. Este tipo de representação não é tão distante da forma de representação de pessoas negras da época: fortes e “dispostas ao trabalho”.

Seguindo pelos núcleos, chegamos ao centro da expografia da mostra, onde estão localizadas obras dos “Mestres negros pioneiros”: pessoas pretas, escravizadas, que trouxeram para o Brasil seus conhecimentos, como o trabalho em metal e em madeira. Esses artistas, que muitas vezes permaneciam no anonimato, produziam a maior parte de suas obras a partir da demanda da Igreja e de fiéis. Por isso, as imagens católicas e os estilos barroco e o rococó são predominantes nas artes desse núcleo. Eu gostaria de destacar uma escultura de Mestre Valentim (1745-1813) na qual a imagem de “São Paulo” foi talhada em madeira (Figura 4). A perfeição das feições, dos cabelos e das dobras das vestes impressionam. Eu havia esquecido de mencionar, mas após a abertura, voltei em outra ocasião à exposição e participei de uma visita mediada e, nesta parte da exposição, nossa mediadora nos dizia que muitos desses artistas trabalhavam arduamente para conseguirem comprar suas liberdades. Então, mais do que uma forma de expressão de arte e de um ganha pão, Mestre Valentim e outros, como Manuel da Cunha, estavam lutando e resistindo através de suas obras.

O núcleo “Nas brechas das representações: imagens e trajetórias de negros no acervo do Museu Nacional de Belas Artes” foi, para mim, o mais interessante. Nesta parte, a curadoria trouxe obras nas quais as pessoas pretas eram representadas, principalmente por artistas estrangeiros, em situações de trabalho, de castigo ou até como parte da paisagem. Nesse núcleo, temos o interessantíssimo trabalho do artista paraense PV Dias. Na sua série “Rasurando Fidanza” (2023), Dias promove rasuras nas fotografias do fotógrafo português Filipe Augusto Fidanza, que produziu muitas imagens denominadas “fotografias étnicas” e nas quais pessoas negras posavam em seus postos de trabalho, com objetos que indicavam suas ocupações, reforçando o olhar racista estrangeiro sobre essas pessoas (Figura 5). Essas rasuras fizeram-me lembrar do texto “Vênus em dois atos” da pesquisadora estadunidense Saidiya Hartman.

Hartman trata dos limites que as narrativas negras encontram nos arquivos. Sabendo que a história da escravidão é um relato doloroso, desrespeitoso, seria possível através da “fabulação” expandir os limites da realidade e obter certa reparação da dignidade aos corpos mutilados e às histórias interrompidas? Segue um dos trechos:
“...como seria possível gerar um conjunto diferente de descrições a partir desse arquivo? Imaginar o que poderia ter sido? Visualizar um estado livre a partir dessa ordem de afirmações? Os perigos envolvidos nessa tentativa não podem ser colocados entre parênteses ou evitados por causa da inevitabilidade da reprodução dessas cenas de violência, que definem o estado da negritude e a vida da (o) ex-escrava(o). Pelo contrário, esses perigos estão situados no coração do meu trabalho, tanto nas histórias que escolhi contar como naquelas que evitei. (HARTMAN, 2020, p. 22).
Nas rasuras de PV Dias, o artista risca o nome do fotógrafo e “dá” a essas pessoas câmeras fotográficas, filmadoras e drones para que elas possam construir suas próprias narrativas imagéticas. Além disso, se observarmos com atenção, notamos que ele as “calça” também. Lembremos que pessoas escravizadas não podiam usar sapatos. Bem em frente às fotografias de PV Dias, algumas esculturas em bronze chamaram a minha atenção, não pela arte, mas pelos títulos, que foram tachados e reescritos. Por exemplo, uma escultura de João Batista Ferri, que se intitulava “O escravo” agora foi renomeada como “O escravizado”. Ao optar por usar o termo escravizado, a curadoria nos remete à responsabilização daqueles que foram os autores desse crime. Não é mais como se aquelas pessoas tivessem nascido para servir a alguém. É dizer que alguém, que detinha o poder, subjugou seres humanos de forma brutal e com a conivência da sociedade. Quando olho para essas e outras rasuras feitas nos arquivos das artes sempre penso o quanto elas flertam com a fabulação de Hartman.
Ainda no mesmo núcleo temos o autorretrato de Arthur Timótheo da Costa (1919), (Figura 6), artista preto, mas que escolhe embranquecer sua pele na pintura. A historiadora da arte francesa, Anne Lafont, em seu livro de ensaios recém-publicado “A Arte dos mundos negros, história, teoria e crítica” (2023) escreve um capítulo inteiro sobre raça e “Como a cor da pele se tornou um marcador racial”. Ela vai falar nas “representações performáticas da branquitude” em pinturas francesas dos séculos XVII e XVIII e em como o tom da pele, fosse obtido de forma natural ou mesmo artificial, carregava um valor social e, especialmente, um valor racial. Lafont vai usar o exemplo de Thomas Jefferson que traçou uma distinção fundamental entre negros e brancos e que, para isso, usava como fonte a teoria estética. Segundo ele a beleza branca era reconhecida inclusive pelos negros. Longe de poder dizer se Timótheo concordava, ou não com tal teoria, fato é que, ao representar-se como um homem branco, o artista busca
alcançar respeito e posição na sociedade racista. Afinal, ele bem sabia que a academia brasileira, assim como a estrutura de sociedade brasileira, bebia diretamente das preconceituosas fontes europeias.

Continuando a caminhada, chegamos ao núcleo “Entre a cátedra e o cativeiro: professores negros”. Aqui, a curadoria trouxe obras de pessoas negras (ex-escravizados, libertos, alforriados, e seus descendentes) que tiveram alguma ligação com a Academia de Belas Artes, com os Liceus de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro e da Bahia, ou ainda que lecionaram em escolas privadas. A ideia foi “pretagonizar” a atuação desses profissionais. Neste núcleo, destaco a obra “Vercingetorix diante de Júlio César” (1886), de Firmino Monteiro (Figura 7). Firmino era neto de pessoas alforriadas e trabalhou desde muito cedo antes de conseguir ingressar, aos dezoito anos, na Academia Imperial de Belas Artes (Aiba). Ele conseguiu destaque e auxílio financeiro do império para estudar na Europa e lecionou na Escola de Belas Artes da Bahia e no Liceu de Artes e Ofícios de Salvador. Ficou famoso por suas paisagens e, no final da vida, dedicou-se ao gênero da pintura histórica. No entanto, críticos como Gonzaga Duque e José Teixeira Leite julgaram que ele não teria obtido êxito nesse gênero de arte devido a um estudo imperfeito da anatomia humana.

A cena mostra o momento em que Vercingétorix, líder dos Arveni, uma das tribos célticas da Gália, foi capturado e apresentado a Julio César. Porém, essa obra não foi escolhida pela curadoria devido a narrativa histórica que carrega, mas sim devido às críticas que recebeu. Segundo a nossa mediadora, a anatomia das figuras humanas foi muito criticada na época, principalmente os pés de Vercingétorix e o fato do soldado à esquerda parecer possuir apenas uma perna. Apesar de enfrentar muita resistência, afinal era um negro pintando o gênero mais valorizado da pintura, Firmino conseguiu estabelecer-se como pintor e em 1899 foi pintado por Emma Mouroux. Eu acredito que só mesmo uma mulher, que sabia o que era carregar o peso do preconceito, para reconhecer a importância desse artista e professor a ponto de retratá-lo. Outro nome que poderia estar neste núcleo é o de Estevão Silva, mas a curadoria entendeu que ele merecia um núcleo próprio na exposição.
“Estevão Silva: transgressões e prenúncios da modernidade no MNBA”. Apenas pelo título do núcleo, já conseguimos ter uma ideia do porquê Estevão Silva ter destaque nesta mostra. Filho de pessoas escravizadas, mas nascido livre, o artista foi a primeira pessoa negra formada pela Aiba. Foi aluno de grandes nomes, como Agostinho da Motta, com quem dividia a preferência pelo gênero, pouco valorizado, da natureza-morta. Ele teria sido o precursor do que hoje conhecemos como happening quando, durante uma exposição, colocou atrás de suas pinturas, as frutas reais para que as pessoas, ao observarem suas artes, pudessem sentir o cheiro do que estava representado. Em “Pretagonismos” temos a oportunidade de ver vários trabalhos desse artista, como na obra da Figura 8, pintada em 1891.

Estevão Silva precisou lutar muito por seu espaço. Certa vez, protestou na presença do imperador dom Pedro II por discordar da premiação que havia sido destinada a ele na 25ª Exposição Geral de Belas Artes, em 1880. Esse fato custou a ele uma suspensão de um ano como discente da Aiba. Foi quando ele passou a lecionar no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. Apesar das dificuldades e dos preconceitos enfrentados, Silva obteve reconhecimento como um dos melhores pintores da sua época, tendo recebido elogios de críticos importantes, como Gonzaga Duque.
Finalmente, o último núcleo vai fazer uma retrospectiva crítica de como artistas negros e suas obras eram recebidas pelo museu. “Decolonialidade em perspectiva: um olhar sobre os artistas negros desde a criação do MNBA”. Criado a partir de um decreto, em 1937, o MNBA, como a maioria das instituições da época, cultivava um conceito academicista de arte e pouquíssimos trabalhos de pessoas negras foram adquiridos nas suas primeiras décadas. Em 1960, o museu passa a ampliar seu conceito e começa a trabalhar com “arte popular” adquirindo trabalhos de artistas, como Ana das Carrancas e arte indígena. Deste núcleo, eu destaco a obra “Colheita de Flores” (1972), de Maria Auxiliadora da Silva (Figura 9). As texturas das flores impressionam e eu cheguei bem perto para admirar o cuidado com que ela esculpiu as flores na tela.

Maria Auxiliadora retratava de forma bem complexa e com uma linguagem única o seu cotidiano. Ela era uma profunda conhecedora das religiões afro-brasileiras, então achei muito natural quando encontrei um preto velho sentado feliz bem no meio da plantação de flores, curtindo seu cachimbo e abençoando o trabalho de todos. Os pretos velhos são entidades da Umbanda que representam espíritos de pessoas escravizadas que morreram já idosas. Eles simbolizam humildade e amor e são conhecidos por serem pacientes, sábios e generosos. A Umbanda, assim como o Candomblé, é uma religião que surgiu a partir das transmutações que os saberes africanos sofreram após a “encruzilhada” com a cultura europeia, e indígena também. Foi isso que aprendi com Leda Maria Martins, professora, pesquisadora, poetisa e dramaturga, que usa esse termo “encruzilhada” desde 1991. Segundo Leda:
“Nas Américas muitos dos princípios basilares da gnose negra, suas epistemes e todo um complexo acervo de conhecimento e de valores foram reterritorializados, reimplantados, refundados, reciclados, reinventados, reinterpretados, nas inúmeras encruzilhadas históricas derivadas dessa travessia.” (MARTINS, 2021)
Essas encruzilhadas que Leda menciona estão muito presentes nas obras de Maria Auxiliadora. Na obra “Umbanda, (1968), que faz parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo, Maria Auxiliadora representou uma cerimônia religiosa em detalhes. Por último, eu gostaria de falar sobre dois artistas que fazem parte da nova leva de obras adquiridas pelo MNBA: Lídia Vieira e Marcos Roberto. Essas novas aquisições são, segundo a curadoria, de artistas que tratam, além das temáticas relacionadas à negritude, também de questões sociais e de outras. Lídia Vieira, uma artesã e ceramista pernambucana que começou ainda criança a esculpir brinquedos para vender e ajudar os pais que eram louceiros. A partir dos anos 1960, o trabalho de Lídia ficou conhecido por artistas e intelectuais do Recife, alguns que atuavam no movimento armorial. Armorial foi um movimento artístico brasileiro, fundado pelo escritor Ariano Suassuna, que tinha o objetivo de criar uma arte brasileira a partir das raízes populares, principalmente do nordeste, que guardasse e protegesse essa “essência” para que ela não se perdesse. Apesar das pequenas dimensões, a obra de Lídia não deixou de ser notada por mim: uma escultura de barro modelado, intitulada “Camponês com enxada” (1963), de 21 x 8 x 9 cm (Figura 10). O poder da simplicidade.

A última obra a me capturar durante a visita foi o trabalho de Marcos Roberto. Paulista de Bauru, Marcos Roberto é um ex-operário que utiliza materiais de construção em suas obras, principalmente chapas metálicas. A obra dele exposta em “Pretagonismos” faz parte da Série “Páginas para um tempo em branco” e é feita com óleo e esmalte industrial sobre chapa de aço. Em grande parte dessa série, o artista reproduz os próprios desenhos dos cadernos da escola em chapas de aço, para tratar da importância da cultura na educação. Pessoalmente, acho incrível o trabalho de Marcos porque de início nos perguntamos: afinal o que é isso? É um papel de caderno, uma folha de revista? Papelão? É aço.
Na obra exposta em “Pretagonismos”, Marcos Roberto me fez pensar não em um caderno, mas em um livro de História com a página rasgada. “Brasil, Ciclo do Ouro - XXI” (2022), (Figura 11) traz a imagem de um homem preto, com postura curvada, sem camisa, que segura uma peneira junto a um homem branco, com vestes de Bandeirante, que por sua vez, coleta o que está na peneira. Dois homens em segundo plano, um deles segurando uma flecha, observam a cena. Ao fundo, vemos uma paisagem com uma estrada e vários morros, que eu chutaria tratar-se do Pico do Jaraguá, o principal local de extrativismo de ouro do estado de São Paulo (informação que me lembro das aulas de história da professora Cibele). Nesta obra não conseguimos ver o rosto do homem branco, porque ele foi “rasgado’. É como se Marcos Roberto quisesse deixar o protagonismo para o trabalhador negro, e/ou protestar, “rasgando” o rosto do bandeirante, que explorou tantas pessoas pretas, durante o chamado “Ciclo do Ouro”.

Ao lado dessa imagem que eu descrevi, existe ainda um pedaço de outra imagem. Desta vez, trata-se da parte de traz de uma moto (ou de uma bicicleta) que corre velozmente pela estrada carregando em sua garupa uma caixa de isopor vermelha, que nos remete a um aplicativo de entregas muito conhecido atualmente. Assim, Marcos Roberto promove um paralelo entre a exploração sofrida pela população, principalmente pelas pessoas negras, no Ciclo do Ouro, no início do século XVIII e as consequências que perduram até hoje, como a continuidade da exploração e da precarização do trabalho em prol da ganância infinita do sistema, no século XXI.
Estou chegando ao final do texto, mas gostaria de abrir um pequeno parêntese. Logo que entrei no último núcleo da exposição, percebi que eu tinha passado por pouquíssimos trabalhos feitos por mulheres. Infelizmente, dos cinquenta e nove artistas participantes de “Pretagonismos”, apenas 7 são mulheres, sendo que apenas 5 mulheres são negras. Tentando equilibrar um pouco a balança, eu optei por mencionar quatro mulheres (sendo três negras) no meu texto. É muito pouco, mas é a minha contribuição no momento. Afinal, o que percebi em “Pretagonismos” não é um problema exclusivo do MNBA, mas sim da maior parte das instituições de arte. Quando não se trata de uma mostra com enfoque específico em gênero, ou em feminismos etc., as mulheres quase sempre são invisibilizadas. Embora não seja este o tema do texto, insisto em mencionar um livro, lançado recentemente, e que dá um ótima resposta para o que normalmente escuto quando faço esses questionamentos. “A História da Arte Sem os Homens” (2023), de Katy Hessel, além de necessário, considero este livro um marco. Fecha parêntese.
No final da exposição, o visitante encontra um “cubo negro”, com palavras e frases proferidas por ícones negros (dos esportes, política, artes, literatura etc). É uma provocação aos “cubos brancos” (galerias, museus e espaços expositivos) dos quais os artistas, em algum momento de suas carreiras, sentem-se obrigados a fazerem parte. Afinal, para “viverem de arte” devem ser aceitos e consagrados pelos olhos destes “senhores brancos”. Grande parte das produções dos séculos passados foram idealizadas para esses tipos de espaços sacralizados e apartados da realidade do mundo. A diretora do museu, Daniela Matera, disse em algum evento, que agora não me recordo qual: “…os museus brasileiros precisam se desafiar e se reavaliar, precisam ouvir (as vozes ancestrais), contribuindo para uma representação mais justa e equitativa de todas as culturas que compõem a história de um país…”
A exposição “Pretagonismos no acervo do Museu Nacional de Belas Artes” foi inaugurada no dia 28 de agosto e fica aberta até o dia 14 de fevereiro de 2025, no Espaço Cultural BNDES, na avenida República do Chile, número 100, no Centro do Rio de Janeiro. Uma visita obrigatória para todas as pessoas que se consideram brasileiras.
REFERÊNCIAS
DASARTES. Agenda. Pretagonismos no acervo do Museu Nacional de Belas Artes | MNBA. Disponível em: https://dasartes.com.br/agenda/pretagonismos-no-acervo-do-
museu-nacional-de-belas-artes-mnba/ . Acesso em 03 dez. 2024.
ESCRITÓRIO DA ARTE. Artista. Estêvão Silva. Disponível em: https://www.escritoriodearte.com/artista/estevao-silva . Acesso em 08 dez. 2024.
HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n.24, p.68-75, 1996.
HARTMAN, Saidiya. Vênus em dois atos. Revista ECO-Pós, v. 23, n. 3, p. 12–33, 24 dez. 2020. Tradução: Fernanda Sousa; Marcelo R. S. Ribeiro.
LAFONT, Anne. A Arte dos mundos negros, história, teoria e crítica. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2023. 208 p.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL. A Mestiçagem a partir de Portinari. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-mesticagem-a-partir-de-portinari/ . Acesso em 03 dez. 2024.
MARTINS, L. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. Rio e Janeiro:
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MNBARIO. Página Oficial do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro-
Facebook. A obra “Autorretrato ou Le manteau rouge” (1923). Disponível em: h ttps://www.facebook.com/MNBARio/posts/a-obra-autorretrato-ou-le-manteau-rouge-
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MUSEU AFRO BRASIL. Índice Biográfico. Lista de Biografias. Biografia. Antônio Firmino
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MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES. Acervo Museu Nacional de Belas Artes. São Paulo: Banco Santos, 2002. 284p.
O GLOBO. Cultura. Artes Visuais. Notícias. Ex-operário, Marcos Roberto expõe no Rio obras em chapas metálicas que simulam páginas de caderno. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/noticia/2023/06/ex-operario-marcos-roberto-
expoe-no-rio-obras-em-chapas-metalicas-que-simulam-paginas-de-caderno.ghtml . Acesso em 08 dez. 2024.
VERVE GALERIA. Artistas. PV Dias. Disponível em: https://www.vervegaleria.com/artistas/pv-dias/ . Acesso em 04 dez. 2024.
Parabéns pelo texto!